31 março 2008

-crítica)(medea-

.Estranha máscara de Medea.



Hotel Medea: teatro mitológico e inconvencional

por Ulysses Maciel*


Representar no palco, hoje, um texto dramático como Medéia implica um risco que a dramaturgia brasileira, navegando em mares desconhecidos e repletos de escolhos, nem sempre consegue evitar. Tais são as "adaptações" que fazem do texto trágico uma representação romântica, atendendo às exigências do mercado e às concepções mais fáceis do público, ou representam o texto comme il faut, o que resulta numa versão que se pretende fiel ao texto clássico uma empresa impossível, pois as platéias de hoje não sentem e não vêem tragicamente.
O texto clássico de Medéia, do tragediógrafo grego Eurípides (sec. V a. C.), é apontado como um dos pontos finais da tragédia clássica, escrito e representado num momento em que a concepção grega de tragédia e o sentimento trágico grego se transformavam, falando-se mesmo, numa análise moderna, num "primeiro Iluminismo", ou seja, uma superação do pensamento mítico e religioso pelo pensamento racional.
O que resta, então, da Medéia original? Resta a tragicidade da mulher que mata os próprios filhos, personagem criada como mito e relida tragicamente por Eurípides e por Sêneca. Para a dramaturgia moderna, eis o primeiro escolho: o cânon teatral. Recuar diante dele é cair no abismo da compreensão fácil, da distorção romântica. Avançar é para poucos, mas os que avançam em busca de maiores prêmios, como os tripulantes da nau Argos, vão em busca de novos significados, que são como o velocino de ouro, objeto mítico que confere poder e perenidade aos reis. Para isso, é preciso primeiramente alcançar a terra de Medéia e conhecer a Medéia feiticeira, neta do Sol.
Nessa empreitada arriscada e mítica, lançam-se atores, diretores e idealizadores de Hotel Medea. O público navega junto, enfrentando o inesperado e a sensação de ser estrangeiro na terra de Medéia. A viagem foi inspirada pelo texto Medea Material
(1982), do dramaturgo alemão Heiner Muller (1929-1995). A paisagem às vezes é familiar, como a gaiola de fitas coloridas que faz parte do imaginário de tantas festas populares brasileiras, ou os capacetes de motociclista, usados pelas guerreiras na segunda parte do espetáculo.
Para Jorge Lopes Ramos, diretor do espetáculo, Hotel Medea é um encontro. A idéia de se inspirar no texto de Muller e introduzir elementos dos mitos que envolvem as festas brasileiras – o bumba-meu-boi do Maranhão e o cavalo-marinho – se originou do encontro entre o diretor e a atriz, performer e preparadora psicofísica Jade Maravala (da Cia. Para-Active, de Londres). No Centro Gargarullo incorporaram-se ao encontro atores e atrizes do Brasil, Reino Unido, Nigéria e Iêmen. Após uma preparação intensa do espetáculo, uma rotina de acordar com o sol nascendo e trabalhar até a meia-noite, o grupo convidou o público para comparecer também ao encontro.
A universalidade do mito está representada por essa multiplicidade de culturas, mitologias e experiências cênicas. Daí a função de uma cenografia que cria uma atmosfera mítica capaz de promover o encontro entre diferentes imaginários. O bumba-meu-boi do Maranhão é o parâmetro mitológico tradutório que torna eficaz o encontro entre mitologias gregas e o público brasileiro, através da simbologia do touro, animal representativo das forças primitivas que sempre desafiam o homem no seu afã de ser racional.
No primeiro ato de Hotel Medea, "O mercado da zero hora", as gaiolas de fitas e o mercado mítico, percorrido pela personagem do boi, criam uma paisagem brasileira onde será iniciada a recriação do mito de Medéia, recriação resultante do encontro entre atores, idealizadores, músicos e público participante.
O que se faz num mercado? Negocia-se. Público e atores são envolvidos numa gaiola de fitas – um cenário brasileiro do boi-bumbá e de muitas outras folias populares brasileiras; nessas gaiolas o espectador-participante negocia com um dos atores algum objeto simples mas significativo, do fósforo que traz a luz a uma caixinha fechada da qual não se conhece o conteúdo. É um mercado de significados, no qual o espectador-participante é levado, pelo convívio com o inexplicável, à metáfora da impossibilidade de alcançar o mito ou de desvendar o sonho: se a negociação é concluída, o mito deixa de ser mito, ou o sonho deixa de ser sonho; torna-se um discurso explicado, racional, e então se perderia a dimensão mítica de
Medéia.
Dessa forma, a cenografia resolve com imagens inconvencionais as situações não convencionais do mito. Na literalidade, o mito é irrepresentável, pois se torna narrativa épica ou romântica. A experiência de participar do espetáculo Hotel Medea leva o público a perceber a especificidade de representar miticamente o trágico, de representar não a solução racionalizada do texto trágico clássico, mas as forças primitivas em jogo no fenômeno do trágico.
No segundo ato representa-se a viagem e o retorno de Jasão. O reencontro de Jasão e Medéia é ativamente vivenciado pelo público, que se torna Medéia e Jasão, usando máscaras dos dois e participando de rituais de homenagem aos personagens. O espectador participante toca os atores, dança com eles, dialoga, acusa Jasão, exalta Medéia. Neste ato há pouco texto e uma longa improvisação. Numa dança de guerra, as atrizes usam capacetes de motociclistas, representando o laço contemporâneo com as tecnologias, as idéias e as situações globais da modernidade.
O terceiro ato é o que segue mais de perto o texto de Heiner Muller. É um diálogo entre Medéia e sua ama, em que esta informa à patroa que Jasão está em companhia da filha de Creonte. Na seqüência, é encenada a morte dos filhos e o sofrimento de Medéia. Essas ações são perpassadas por um canto triste e lamentoso.
O cenário deste ato é também inusitado e desconfortável. Já era bastante tarde da noite quando os espectadores participantes foram conduzidos pelos atores a entrar, descalços, num ambiente abafado e quente, repleto de objetos significativos. Numa pira, havia fogo. Sobre a mesa, um pedaço de carne e uma faca. Uma mulher corta a carne diante do pequeno público, que é então conduzido pelas mãos, às apalpadelas, devido à escuridão, a uma outra sala. Os pés mergulham na água fria de uma piscina rasa, onde bóiam muitos brinquedos de borracha. A passagem do calor da "cozinha" para o frio da água nos pés é mais um elemento provocador, é para não se ficar anestesiado.

Esse encontro pouco convencional entre público e atores, um encontro de negociação de significados – e não a imposição de imagens representadas no palco –, faz ver como o encadeamento de imagens proporcionado pela cenografia de Hotel Medea pode resolver o paradoxo que é representar o mito, ou seja, representar o inalcançável. Hotel Medea, como peça mítica, é mais do que não-realista; é anti-realista, porque releva corajosamente o que na personagem Medéia é impensável de um ponto de vista interpretativo. No espaço cênico do Centro Gargarullo foi experimentada a tradução, em texto teatral, das imagens do imaginário suscitadas pelo primitivismo da personagem Medéia. Caso fosse realizada uma operação meramente tradutória (realista), esta seria a exposição no palco de uma problemática nossa, moderna e contemporânea, a partir da qual simplesmente se afirmaria do alto do palco, autoritariamente, para a platéia: estão vendo, os gregos já haviam pensado nisso! Curioso, mas apenas curioso.
Contrariamente a essa operação que apenas entretém, exaustivamente tentada pela dramaturgia brasileira, que no máximo faz a platéia admirar um belo cenário ou uma bela dança, o que o espectador-participante de Hotel Medea vivencia é a imersão num ambiente mítico, em tudo que ele pode ter de inexplicável, inapreensível, amedrontador e desconfortável. Nesse sentido, Hotel Medea é como um sonho ainda não narrado pelo sonhador: é o mito antes da palavra, é o que vai direto aos sentidos e que faz, dos sentidos, imagens.



* Ulysses Maciel é pesquisador e desenvolve tese sobre Pasolini e a tragédia, no doutorado em Literatura Comparada da UERJ.


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