01 abril 2008

?Você não é Cego, ou: estranhamáscaradeluz!!





Estudo de imagens inspirado no livro "Ensaio sobre a cegueira" de Saramago para trabalho em processo "Estranho, Eu não sou Hamlet". Série de auto retratos de Flávio Rabelo.


Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das letras, 1995.
Estou cego (12:1995).

O cego ergueu as mãos diante dos olhos, moveu-as, Nada, é como se estivesse no meio de um nevoeiro, é como se estivesse caído num mar de leite, Mas a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra, Pois eu vejo tudo branco, (13:1995).

Chegara mesmo ao ponto de pensar que a escuridão em que os cegos viviam não era, afinal, senão a simples ausência da luz, que o que chamamos cegueira era algo que se limitava a cobrir a aparência dos seres e das coisas, deixando-os intactos por trás do seu véu negro. Agora, pelo contrário, ei-lo que se encontrava mergulhado numa brancura tão luminosa, tão total, que devorava, mais do que absorvia, não só as cores, mas as próprias coisas e seres, tornando-os, por essa maneira, duplamente invisíveis. (16:1995).

O sangue tornara-se numa viscosidade sem cor, em algo de certo modo alheio que apesar disso lhe pertencia, mas como uma ameaça contra si mesmo (16:1995).

Imediatamente sonhou que estava a jogar o jogo do E se eu fosse cego, sonhava que fechava e abria os olhos muitas vezes, e que, de cada vez, como se estivesse a regressar de uma viagem, encontrava à sua espera, firmes e inalteradas, todas as formas e cores, o mundo que conhecia. Por debaixo desta certeza tranqüilizadora percebia, contudo, o remover surdo de uma dúvida, talvez se tratasse de um sonho enganador, um sonho de que teria de acordar mais cedo ou mais tarde, sem saber, nesse momento, que a realidade estaria a sua espera. Depois, se tal palavra tem algum sentido aplicada a um quebrantamento que não durou mais que uns instantes, e já naquele estado de meia vigília que vai preparando o despertar, considerou seriamente que não estava bem manter-se numa tal indecisão, acordo, não acordo, acordo, não acordo, sempre chega uma altura em que não há outro remédio que arriscar, Eu que aqui, com estas flores em cima das pernas e os olhos fechados, que parece que estou com medo de abrir (17:1995).

Estou cego, não te vejo (18:1995).

A mulher sentou-se ao lado dele, abraçou-o muito, beijou-o com cuidado na testa, na cara, suavemente nos olhos, (18:1995).

Nada, Nada, quê, Nada, vejo sempre o mesmo branco, pra mim é como se não houvesse noite. (18:1995).

A luz, esta luz, para ele, tornara-se ruído (20:1995)

A mim, porquê. (21:1995)

Também, às vezes sucede, ainda dormimos e já os sons exteriores vão repassando o véu da inconsciência em que ainda estamos envolvidos, como num lençol branco, Como num lençol branco. (21:1995)

Nesta noite o cego sonhou que estava cego (24:1995)

Fizemos dos olhos uma espécie de espelhos virados para dentro, como o resultado, muitas vezes, de mostrarem eles sem reservas o que estávamos tratando de negar com a boca (26:1995)

A agnosia, a cegueira psíquica, é a incapacidade de reconhecer o que se vê... amaurose, que é treva total (28:1995)

Dez minutos depois estava nua, aos quinze gemia, aos dezoito sussurava palavras de amor que já não tinha necessidade de fingir, aos vinte começava a perder a cabeça, aos vinte e um sentiu que o corpo se lhe despedaçava de prazer, aos vinte e dois gritou, Agora, agora, e quando recuperou a consciência disse, exausta e feliz, Ainda vejo tudo branco (33:1995).

Nada mais nada menos que um tipo de cegueira desconhecido até agora, com todo o aspecto de ser altamente contagioso, e que, pelos vistos, se manifesta sem prévia existência de actividades patológicas anteriores de caráter inflamatório, infeccioso ou degenerativo (37:1995).

Há mil razões para que o cérebro humano se feche, só estendeu as mãos até tocar o vidro, sabia que sua imagem estava ali a olhá-lo, a imagem via-o a ele, ele não via a imagem (38:1995).

E serenamente desejou estar cega também, atravessar a pele visível das coisas e passar para o lado de dentro delas, para sua fulgurante e irremediável cegueira (65:1995).

Na verdade os olhos não são mais do que umas lentes, umas objectivas, o cérebro é quem realmente vê (70:1995).

A falta que olhos fazem, ver, ver, ainda que não fosse mais que umas vagas sombras, estar diante de um espelho, olhar uma mancha escura difusa e poder dizer, Ali está aminha cara, o que tivar luz não me pertence (75:1995).

A cegueira não era viver banalmente rodeado de trevas, mas no interior de uma glória luminosa (94:1995).

A gente, disse num tom de quem sorri de si próprio, habitua-se tanto a ter olhos, que ainda julga que os pode usar quando já não lhe servem de nada (95:1995).

Agora havia um silêncio dorido, de hospital, quando os doentes dormem e sofrem dormindo (97:1995).

De que servirá ter olhos límpidos, e belos, como estes são, se não há ninguém para os ver (101:1995).

Se não fôssemos cegos, este engano não teria acontecido, Tem razão, o mal é sermos cegos. A mulhher do médico disse ao marido, o mundo está todo aqui dentro. (102:1995).

Na terra de cegos, quem tem um olho é rei (103:1995).

Se não formos capazes de viver inteiramente como pessoas, ao menos façamos tudo para não viver inteiramente co mo animais (119:1995).

Parece uma parábola, disse uma voz desconhecida, o olho que se recusa a reconhecer a própria ausência (129:1995).

Parece outra parábola, falou a voz desconehcida, se queres ser cego, sê-lo-ás (129:1995).

O medo cega, disse a rapariga de óculos escuros, São palavras certas, já erámos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos (131:1995).

Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira. Ninguém lhe soube responder (131:1995).

Estes cegos, se não lhes acudirmos, não tardarão a transformar-se em animais, pior ainda, em animais cegos (134:1995).

Não aguento, não posso continuar a fingir que não vejo (134:1995).

Que faço eu, se a minha maior preocupação é evitar que alguém perceba que eu vejo ... tu não sabes o que é ver dois cegos a lutarem, Lutar foi sempre, mais ou menos, uma forma de cegueira... Se tu pudesses ver o que eu sou obrigada a ver, quererias ser cego (135:1995).

Sou cobarde, murmurou exasperada, para isto mais valia estar cega, não andaria com veleidades de missionária (137:1995).

De que me serve ver (152:1995).

Um silêncio que parecia estar a ocupar o espaço de uma ausência, como se a humanidade, toda ela, tivesse desaparecido, deixando apenas uma luz acessa e um soldado a guardá-la, a ela e aum resto de homens e mulheres que não podiam ver (154:1995).

Assim como um corpo que procurasse, na cama, o côcavo que havia sido preparado para ele pela simples idéia de deitar-se (155:1995).

Oxalá não seja isto febre, pensou. Não seria, seria só uma fadiga infinita, uma vontade deenrolar-se sobre si mesma, ols olhos, ah, sobretudo os olhos, virados para dentro, mais, mais, mais, até poderem alcançar e observar o interior do próprio cérebro, ali onde a diferença entre o ver e o não ver é invisível à simples vista (158:1995).

Cala-te, dissem suavemente a mulher do médico, calemo-nos todos, há ocasiões em que as palavras não servem de nada, quem me dera a mim poder também chorar, dizer tudo com lágrimas, não ter que falar para ser entendida (172:1995).

E quando é necessário matar, perguntou-se a si mesma enquanto ia andando na direcção do átrio, e a si mesma respondeu, Quando já está morto o que ainda é vivo (189:1995).

Fosse por efeito da fome ou porque o pensamento subitamente a seduziu como um abismo, variou-lhe a cabeça uma espécie de aturdimento, o corpo moveu-se-lhe para adiante, a boca abriu-se para falar, mas nesse momento alguém lhe agarrou e apertou o braço, olhou (191:1995).

Sempre houve quem enchesse a barriga com a falat de vergonha (191:1995).

As mulheres ressuscitam umas nas outras, as honradas ressuscitam nas putas, as putas ressuscitam nas honradas (199:1995).

Compreendeu que não tinha qualquer sentido, se o havia tido algumas vez, continuar com o fingimento se ser cega, está visto que aqui já nunguém se pode salvar, a cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança (204:1995).

Diz-se a um cego, estás livre, abre-se a porta que o separava do mundo, Vai, estás livre, tornamos a dizer, e ele não vai, ficou ali parado no meio da rua, ele e os outros, estão assustados, não sabem para onde ir, é que não há comparação entre viver num labirinto racional, como é, por definição, um manicômio, e aventurar-se, sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostar a imagem dos lugares e não os caminhos para lá se chegar. (...) Mantêm-se juntos, apertados uns contra os outros, como um rebanho, nenhum deles quer ser a ovelha perdida porque de antemão sabem que nenhum pastor os irá procurar (211:1995).

Toda a gente está cega, Toda a gente, a cidade toda, o país, Se alguém ainda vê, não o diz, cala-se (215:1995).

Somos uma espécie de nora às voltas, ao princípio houve algumas lutas, mas não tardamos a perceber que nós, os cegos, por assim dizer, não temos praticamente nada a que possamos chamar de nosso, a não ser o que levamos no corpo (216:1995).

Aqui não há mais que escuridão, e a escuridão não mord nem ofende (222:1995).

Meu Deus, a luz existe e eu tenho olhos para ver, louvada seja a luz (223:1995).

Por toda parte há cegos de bocas aberta para as alturas, matando a sede, armazenando água em todos os recantos do corpo (225:1995).

Nunca houve tanto silêncio no mundo (232:1995).

Não diferença entre o fora e o dentro, entre cá e lá, entre os poucos e os muitos, entre o que vivemos e o que teremos de viver (233:1995).

Havia sinais de ter passado por ali gente há pouco tempo, certamente um grupo errante, como mais ou menos o eram agora todos, sempre indo de casa em casa, de ausência em ausência (235:1995).

porque os olhos, os olhos propriamente ditos, não têm qualquer expressão, nem mesmo quando foram arrancados, são dois berlindes que estão para ali inertes, as pálpebras, as pestanas, e as sobrancelhas também, é que têm de encarregar-se das diversas eloquências e retóricas visuais, porém a fama têm-na os olhos (236:1995) .

Já tinham uma luz dentro da cabeça, tão forte que os cegara (240:1995).

Mas o que penso é que estamos mortos, estamos cegos porque estamos mortos, ou então, se preferes que diga isto doutra maneira, estamos mortos porque estamos cegos, dá no mesmo(241:1995).

A responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam (241:1995).

O que está a fazer agora é assar à volta de todos e de si própria uma corda de tiras de pano entrelaçadas (249:1995).

Não havendo testemunhas, e se as houve não consta que tenham sido chamadas a estes autos para relatarem o que se passou, é compreensível que alguém pergunte como foi possível saber que as coisas sucederam assim e não doutra maneira, a resposta a dar é a de que todos os relatos são como a criação do universo, ninguém lá esteve, ninguém assistiu, mas toda gente sabe o que aconteceu(253:1995).

Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos (262:1995).

O único milagre que podemos fazer é continuar a viver, disse a mulher, amparar a fragilidade da vida um dia após o outro, como se fosse ela a cega, a que não sabe para onde ir, e talvez assim seja, talvez ela realmente não o saiba, entregou-se em nossas mãos depois de nos ter tornado inteligentes, e a isto a trouxemos(283:1995).

É um velho costume da humanidade, esse de passar ao lado de mortos e não os ver (284:1995).

Engano teu, as imagens vêem com os olhos que as vêem (302:1995).

Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêm (310:1995).


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