04 dezembro 2007

.o coletivo se faz estranho.


>>>>>>>>>>>>>>>> Segunda parte virtual do seminário A cidade e os processos criativos:
O seminário se estrutura a partir das relações entre as pesquisas dos artistas Mário Fiore e Flávio Rabelo, onde a partir da influência da cidade em seus mais variados aspectos, constroi-se uma série de criações em arte. Mário Fiore, artista visual. Flávio Rabelo, ator e performer. Ambos, abrem espaço para o confronto poético com os espaços públicos e seus elementos disonantes na construção de suas trajetórias artísticas.
O pensamento foi criar a apresentação do seminário coletivamente, numa estrutura que remetesse a alguns conceitos importantes nestas duas pesquisas, como a idéia de obra em processo, jogo, rede, presença, virtualidade, rizoma e subjetivação do olhar, para citar alguns. Desta maneira, os conteúdos tratados estariam postos também no aspecto formal. Assim, resolvemos contruir nossa narrativa a através da possível relação com alguns objetos referentes ao nosso caminho de criação. Estes objetos foram espalhados pelo espaço e a medida que eram escolhidos pelos participantes, Mário e/ou eu tecíamos comentários, reflexões, divagações, descrições, pausas, gestos, olhares e suspiros que pouco a pouco iam conectando os conteúdos e as nossas práticas artísticas.
As imagens utilizadas nestas postagens foram produzidas coletiva e espontaneamente pelos integrantes da turma presentes durante a apresentação da primeira parte do seminário (presencial) , realizada no dia 29 de novembro de 2007. Esta ação coletiva também estava dentro do nosso jogo performático e serve, entre muitos aspectos, como ponte entre o ocorrido e sua posterior reflexão. Imagem matéria do jogo infinito de atualização/virtualização inerentes aos processos criativos.
Os textos desta portagem são fragmentos de um capítulo ainda em construção de minha dissertação de mestrado.
Este seminário foi elaborado para a disciplina Seminário Avançado, com as professoras Sarah Lopes e Verônica Fabrine, no programa de pós-graduação do Institudo de Artes da Unicamp.
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Encontro na beira do abismo:
Neste intuito topográfico, é preciso destacar o caráter artístico atrelado ao conceito ‘performance’, visto a amplitude semântica do termo, pois, já há algum tempo, esta palavra inglesa tem seu significado associado as mais variadas ações do nosso cotidiano. Sua significação abrangente adquire facetas múltiplas, servindo a diversos setores de atividades; humanas ou não; sejam estas artísticas, esportivas, políticas ou religiosas. Assim:

Assumir-se a multiplicidade de significados atrelados ao significante ‘performance’ é condição inicial para seu entendimento. Sabemos que ‘performance’ tem orientado, inspirado e/ou desobstruído teorias e práticas de sociologia, antropologia, lingüística, psicologia, filosofia, neurologia, artes cênicas, artes plásticas, música e dança, entre outros campos de conhecimento. Essa amplitude conceitual pode provocar um desconforto com a abrangência desconcertante e escorregadia de performance como conceito, como objeto de estudo, como gênero artístico ou como metodologia de crítica e pesquisa (...) Performance inclui, entre outros campos de estudo, rituais, festas populares, repetição de comportamentos no cotidiano, performing self, sexualidades e gênero, desempenho linguístico, o evento teatral, a encenação de peças, drama literário, dramaturgia de imagens, aula-performance, crítica em performance e outras produções multi, pluri, anti ou interdisciplinares em frente de platéias em diversos tipos de espaço cênico, além do teatro, englobando lingüística, ciências sociais, psicologia, pedagogia, neurologia, letras e artes. O termo e conceito performance vai contra visões logocêntricas e excludentes de teatro (Villar,2001:833).
Assim, a performance, mesmo enquanto linguagem artística, sempre esteve associada à superação dos rótulos ou classificações, questionando os interesses acadêmicos, críticos ou comerciais. Esta situação possibilita que a significação do termo vá transformando-se e re-definindo-se mediante certas práticas e ocupando terrenos inesperados. Ao longo dos tempos, foi reinventando-se a partir das apropriações feitas por artistas das mais variadas expressões. Ou, ainda, como afirma Renato Cohen[1] “a performance instala-se como arte híbrida, ambígua, oscilando entre a plena materialidade dos corpos e a fugacidade dos conceitos” [2]. Para além do debate conceitual, esta dificuldade de identificação do acontecimento performático atinge também àqueles artistas interessados em sua prática, ou seja, aos próprios artistas performadores, e ao público das artes cênicas em geral. Como explica Cohen:


O que aconteceu é que a partir do momento que performance começou a ser associada com “acontecimento de vanguarda”, qualquer artista ou grupo que fizesse um trabalho menos acadêmico atribuía-lhe essa designação, independente ou não da produção ter alguma contigüidade com o que se entende por performance. A noção que ficou para o público brasileiro é que performance é um conjunto de sketches improvisados e que é apresentada eventualmente em locais alternativos. (...) Essas características são mais próprias do que se entendia por happenig e que justamente o que caracteriza a passagem do happenig para a performance é o aumento de preparação em detrimento do improviso e da espontaneidade (1989:27).

É claro que muito já foi feito e pesquisado e estes avanços na produção em performance artística não permitem mais que estas dificuldades de conceituação se banalizem ou ganhem importância demasiada. A partir dessa percepção, mesmo que não se pretenda aqui chegar a uma definição fechada sobre esta manifestação artística; não podemos nos esquivar da possibilidade de reflexão. Objetivamos, assim, percorrer com o próprio corpo os rastros deixados por essa linguagem e descrever esses caminhos numa atitude reflexiva sobre alguns aspectos que lhes são próprios.

(...)

Como espaço de performação pode ser usado qualquer lugar onde estejam atuantes e público. Genericamente não há necessidade de um local específico (como um teatro, museu ou sala) e sim a especificidade do local escolhido pelo(s) Artista(s)/Performer(s) para o acontecimento de sua obra. A escolha desse espaço costuma ser considerado um aspecto importante por vários artistas performáticos, geralmente se constrói performances em função, ou partir, das especificidades do espaço escolhido. “Esses espaços livres reforçam a tridimensionalidade e eliminam uma separação clara entre área do público e do atuante” (Cohen, 1989:59).
(...)


A pesquisa caracteriza-se também peo debate rizomático e paradoxal sobre o Corpo em Arte e as nuances possíveis entre atuação, interpretação e performance. O primeiro paradoxo comum ao processo aqui citado é o de buscar as diferenças e semelhanças a partir do entrecruzamento dos conceitos e práticas colocados em experienciação pelos corpos participantes dos processos. Privilegia-se a relação, a ação, o próprio processo, os acasos, as experiências, as fronteiras, os limites, as misturas e os cruzamentos entre teoria e prática através dos corpos em questão.



(...)



"mas eu
idiota inerte
alma de lodo
vivo na lua
alheio a minhas próprias questões
e não sei fazer nada
serei eu um covarde?"
(Hamlet)



(...)


O texto é utilizado no sentido semiológico, podendo ser simbólico (verbal), icônico (imagético) ou indicial (sombras, fumaças, ruídos etc). As ações não tinham sua narrativa construída segundo os princípios tradicionais de início, meio e fim.

(...)

Em relação à participação do público, o que se pretende é recuperar o sentido da ação ritualística, onde todos são considerados atuantes. Esta característica de rito dá-se pela valorização do instante presente, do momento da ação, onde há uma quebra com o sentido de ficção, abrindo margem para o imprevisto, para o risco. Assim, coloca-se o espectador numa espécie de comunhão com o acontecimento, como quem testemunha um ato em cumplicidade.
(...)

Esta interface entre teoria e prática, entre o mundo das idéias e o das ações, está relacionada tanto a aceitação dos paradoxos quanto a forma rizomática de construção da experiência e não é uma novidade na produção artística contemporânea. Durante o processo criativo, inclusive, este foi também um dos tópicos em debate e podemos apontar esta relação paradoxal como uma das características desde as vanguardas artísticas do início do século XX. Como explica Moreira:

O vínculo entre teoria – práxis caracteriza as vanguardas. Não podemos analisá-las estritamente como um estilo, como uma “prática artística”, desconsiderando as postulações teóricas elaboradas por esses artistas em seus manifestos e textos (...) Entre as vanguardas estes dois domínios – o teórico-filosófico e o do fazer artístico – não são apenas correlatos como em outros momentos da História da Arte, mas urdidos numa relação de complementaridade mútua e ambos elaborados pelos próprios artistas de vanguarda (1996:170).

Surgiram, então , vários paradoxos a serem administrados durante todo o percurso: teoria/prática; pensar/agir; indivíduo/coletivo; o dentro/o fora; real/ ficção; Hamlet/minha pesquisa e vida; apenas para citar alguns.

A ação performática em processo “Estranho, Um Cara Comum”
consiste, até o presente momento, em ficar doze horas sentado na calçada em frente à igreja catedral das cidades, como quem desiste de ver o mundo da forma que estava acostumado a ver, quase totalmente inerte, olhando presente o cotidiano e reagindo com pequenas ações espontâneas. Ou seja, provocando e sendo provocado pelo olhar de quem passa. Um olhar que transita pela possibilidade de ser notado ou não. Um corpo que é comum e/ou é estranho a partir da sua capacidade de manipulação do eixo tempo/espaço, ou seja, um corpo que é cotidiano e performativo a partir das ações executadas. Um corpo em fluxo – mesmo que sentado quase imóvel numa calçada – um corpo de paisagens internas e externas, de mergulhos e vôos, multi-relacional, e também um corpo imagem e que vive o paradoxo da ação.

Agir? Ou não agir? Eis a questão tanto na vida como na arte.

A partir destas experiências com o “Estranho...”, surgiram quatro ações independentes que venho executando em situações diversas, algumas com caráter cênico mais acentuado e outras bem próximas de nosso cotidiano. As ações são:

1. Usar um velho espelho
[3] retrovisor, tanto para olhar o espaço externo e interno, como para mostrar as pessoas também estes espaços.
2. Entregar pedaços de papel em branco.
3. Desenhar com carvão no chão.
4. Criar uma rede de ligações (como uma cama de gato) com um fino fio vermelho.

Estas ações se transformaram em estruturas independentes – mas relacionadas - que utilizo quando em ação no processo de pesquisa solo. Destas, as duas primeiras foram utilizadas durante o processo de criação de “Abstract Hamlet” por suas conexões possíveis com o que vinha pesquisando sobre Hamlet, seus conflitos e motivações. Foram, assim, os elos de ligação, as vias de acessos, os vínculos também simbólicos sobre o quais o encontro entre as duas ações performáticas aconteceu; foram o espaço de estranhamento e conexão.

(...)

Vale destacar que estes acontecimentos trabalham com todos os canais de percepção, onde as ações executadas pelo corpo transformado em signo, em veículo significante pela desmitificação da ordem cultural, “são construídas sobre experiências táteis, motoras, acústicas, cinestésicas e particularmente, visuais” (Glusberg, 1987:71). Ou ainda, estamos situados no que Renato Cohen chama de cena das vertigens, das simultaneidades, dos paradoxos do espírito de época contemporâneo. Esta cena é a “da disjunção, ‘dos corpos sem vozes, das vozes sem corpo’, a cena da mediação – da montagem, a grande cena mental – em que imaginário e real estão plenamente confundidos” (2004: XXIII). Assim, as ações cênicas/performáticas aqui relacionadas têm como estrutura interlinguagens e hibridismos, vista como uma colagem tridimensional ou como uma assemblage cênica, portanto, viva.
(...)

Em ações performáticas o tempo pode variar de dias a segundos dependendo das escolhas e objetivos dos artistas envolvidos. Assim:

há uma relação com o tempo interno da experiência, um tempo subjetivo e próprio de cada performance, que assume um valor intrínseco e vai dar singularidade a essas manifestações artísticas, permitindo diferenciá-las de outras. (...) Trata-se do tempo próprio de cada manifestação, o desenrolar temporal da obra, que nunca coincide com o tempo cronológico (Glusberg, 1987:68).


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[1] O brasileiro Renato Cohen além de ter sido um dos mais respeitados estudiosos e teórico da performance, foi também um artista multimídia com vasta produção em teatro, dança, instalações e artes plásticas. Faleceu em 2003, aos 47 anos.
[3] “A verdade revelada pelo espelho pode, evidentemente, ser de uma ordem superior; evocando o espelho mágico dos Ts’in, Nichirien o compara ao espelho do Dharma budista, que mostra a causa dos atos passados. O espelho será o instrumento de iluminação. O espelho é, com efeito, símbolo da sabedoria e do conhecimento. (...) Esses reflexos da Inteligência ou da Palavra Celeste fazem surgir o espelho como símbolo da manifestação que reflete a inteligência criativa”. (Chevalier,1982:394)

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